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Os princípios da Arte

Figura A

Na etapa quaternária da Arte esta figura contém os sete atributos de Deus, chamados “dignidades” (ou algumas vezes “virtudes”), as semelhanças que se refletem na realidade criada. A figura é desenhada com uma rede completa de linhas entrecruzadas para mostrar que cada uma destas dignidades concorda com as outras. 

Na etapa ternária da Arte reduzem-se a nove: bondade, grandeza, eternidade, poder, sapiência, vontade, virtude, verdade e glória. Neste momento já não se denominam “dignidades”, mas “princípios”, porque não se aplicam exclusivamente a Deus, mas a toda a escala de seres. Estas duas funções diferenciam-se pelo facto de que no mundo criado se podem distinguir umas das outras, mas coincidem e são idênticas em Deus, por exemplo, a bondade é grande e a grandeza é boa. A caraterística distintiva de Deus reside neste facto e permite-nos defini-lo exclusivamente: Deus é o ser no qual a bondade, a grandeza, a eternidade e o resto das dignidades coincidem; daqui se segue a demonstração per aequiparantiam ou argumento de identidade – isto é, a identidade de Deus com as suas dignidades e destas com elas mesmas.

Figura T

Este segundo grupo de princípios estabeleceu-se na Arte quaternária para determinar os possíveis modos de relação existentes entre outros conceitos da Arte. Consiste em cinco triângulos de três conceitos cada um: Deus, criatura, operação; diferença, concordância, contrariedade; começo, meio, fim; maioridade, igualdade, menoridade; afirmação, dúvida, negação. Assim Lúlio podia estabelecer, por exemplo, a concordância entre duas dignidades ou a contrariedade entre uma virtude e um vício. Na Arte ternária o primeiro e o último triângulo desapareceram e os componentes da figura reduziram-se a nove {inserir imagem 49}. Neste momento aparecem as definições destes conceitos, como por exemplo “concordância é ente por razão do qual a bondade, etc., numa coisa e em muitas concordam”. Por outro lado, são considerados como princípios gerais, aplicáveis a toda a hierarquia do ser (com exceção da “contrariedade” e da “menoridade” que não fazem sentido em Deus) e podem “misturar-se” com os princípios da Figura A para produzir os elementos que seja necessário.

A doutrina dos princípios completou-se com a dos “correlatius”, uma articulação original da ontologia dinâmica de Lúlio. Os correlativos têm a sua origem num desenvolvimento da forma nominal dos verbos transitivos: o particípio presente como forma ativa, o particípio passado como passiva e o infinitivo como ligação entre os dois. Desta maneira, Lúlio fazia geral uma doutrina que Santo Agostinho, para explicar o mistério da Trindade, tinha aplicado aos verbos que expressam as atividades da alma (“conhecendo”, “conhecido” e “conhecer”, “amando”, “amado” e “amar”, etc.). Portanto cada um dos princípios de Lúlio, uma vez convertidos essencialmente numa força ativa, desenvolvia-se formando uma triada de correlativos (“Bondade”, por exemplo, = “bonificativo’, ‘bonificável’ e ‘bonificar’; ‘grandeza’ = ‘magnificativo’, ‘magnificável’ e ‘magnificar’, etc.). Até Lúlio se apercebeu que os leitores podiam assustar-se com uma linguagem aparentemente excêntrica e sem sentido! Mas não era esta a questão; o que Lúlio desejava expressar através desta terminologia estranha e singular era uma mensagem com um grande objetivo: como Deus era infinitamente ativo e fecundo, as suas dignidades não podem permanecer eternamente ociosas e estéreis. A partir desta nova teoria, que se torna o princípio fundamental da teologia de Lúlio, podiam deduzir-se racionalmente a Trindade e a Encarnação. Por outro lado, a teoria também era relevante desde um ponto de vista filosófico. Com a expressão de uma conceção dinâmica de ser, o repertório dos correlativos pôs em marcha todo um edifício do sistema de Lúlio; por intermédio dos correlativos até o mundo participava do ritmo vital trinitário presente na criação de Deus.

A Arte trazia o complemento de uma série de signos e dispositivos gráficos com os quais Lúlio expressava os elementos e a sua combinação. Os principais eram o Alfabeto, as Figuras e a Tábua. O Alfabeto atribuía letras a diversos conceitos da Arte. Na etapa quaternária – na Ars demonstrativa por exemplo – as vinte e três letras do alfabeto latim medieval representam um complicado desenvolvimento de conceitos e figuras. Na etapa ternária as letras de B a K representam os nove conceitos de cada série dos componentes da Arte (sobretudo os das figuras A e T). As Figuras usavam-se para agrupar diversos conceitos da Arte em sequências homogéneas. Na etapa quaternária eram em número de doze ou dezasseis e, com uma exceção, eram de duas maneiras: umas eram circulares, com linha entrecruzadas para fazer ver as concordâncias entre os componentes; as outras apresentavam uma disposição triangular de compartimentos binários, uma disposição denominada tecnicamente “matriz média”; cada uma correspondia a uma das figuras circulares. A única exceção era a Figura Elementar composta por quatro quadrados de sete compartimentos que representam as diversas combinações dos quatro elementos da fisiologia medieval: terra, ar, fogo e água. Na etapa ternária as figuras reduzem-se a quatro: duas de circulares para A e T (sem as linhas entrecruzadas), uma meia matriz para as possíveis combinações binárias das nove letras do Alfabeto e uma figura giratória que mostrava todas as combinações ternárias possíveis destas mesmas letras. Finalmente, a Tábua, de 84 colunas e 20 componentes cada uma, resolve todas as possíveis combinações ternárias implícitas na Quarta Figura giratória.

A interação de todos estes elementos dá lugar a uma “combinatória”. De facto, Lúlio, em harmonia com a lógica medieval, concebeu a sua Arte como uma ferramenta para forjar juízos e silogismos. Como vimos, foi com este propósito que começou a atribuir letras a diversos conceitos da Arte. Depois, por intermédio de combinações binárias e ternárias de letras, estabeleceu a relação necessária entre os termos de um juízo e de um certo número de juízos. Lúlio denominou esta operação “fer cambres” (“formar compartimentos”). Todo este mecanismo estava orientado por uma finalidade específica: descobrir em qualquer área temática os termos apropriados para formar juízos e silogismos e desta maneira construir raciocínios lógicos através de uma forma de necessidade matemática. É aqui, neste intento, ao mesmo tempo ingénuo e genial, de mecanizar e matematizar o conhecimento – uma antecipação distante da lógica simbólica moderna –, onde residem os fundamentos do peculiar poder de sedução que exerceu a Arte de Lúlio através da história, desde os tempos de Nicolau de Cusa aos de Leibniz.