- Introdução
- Contexto
- Vida
- Pensamento
-
Obras
- Plurilinguismo
- Llull e o catalão
- Difusão e conservação das obras
- Livro de contemplação em deus
- Llibre del gentil e dels tres savis
- Llibre de l'orde de cavalleria
- Doctrina pueril
- Llibre de Evast e Blaquerna
- Llibre d'amic e amat
- Ars demonstrativa
- Llibre de meravelles ou Fèlix
- Llibre de les bèsties
- Desconhort
- Arbre de ciència
- Arbre exemplifical
- Cant de Ramon
- Retòrica nova
- Logica nova
- Liber de fine
- Art breu
- O fantástico
- Art abreujada de preïcació
- Imagens
- Base de dados / Dicionário
O personagem de “Raimundo”
O ex-trovador Raimundo Lúlio, depois da conversão, renegou a sua figura mundana de cantor de amor carnal. A vergonha e a humildade fizeram que ocultasse a própria identidade nos seus primeiros escritos. Por isso, no prólogo do Libre de contemplació en Déu (1273-1274), declara que omite o seu nome para atribuir o livro a Deus. De qualquer maneira, o penitente Raimundo não deixa de apontar os seus erros de conduta, com a finalidade de embelezar a prosa que escreve: quando confessa que foi um jogral desencaminhado, quando afirma que a beleza das mulheres atuou sobre ele como um veneno, quando se acusa de ter esquecido o amor a Deus.
Alguns personagens de ficção do Llibre de Evast e Blaquerna (Montpellier, 1238) e do Llibre de meravelles (Paris, 1288-1289) apresentam aspetos que Raimundo podia ter destilado ou fabulado a partir da sua própria experiência. Em qualquer caso, o personagem de “Raimundo” não é um ente de ficção, mas o resultado de uma construção autobiográfica perfeitamente controlada. A dedicatória autógrafa de um manuscrito da Ars demonstrativa, copiada em 1289, começa: “Ego, magister Raymundus Lul, catahalanus, trasnmitto et do istum librum...”. Obras como Descohnort (1295), o Cant de Ramon (1300), a Vita coaetanea e o Fantástico (1311) glosam o currículo do dador deste códice através de uma perspetiva decididamente promocional e propagandística.
A passagem das Artes da primeira fase às da segunda representou uma alteração profunda nos procedimentos lulianos de oferecer ao mundo a própria imagem. Tinha de explicitar em que consistia a sua “autoria”, já que a ousadia e a ambição da Arte como sistema de pensamento podiam ser entendidas como um ato ilícito de presunção intelectual. Lúlio nunca deixou de atribuir a Deus a sua Arte. Segundo nos diz, com efeito, esta foi-lhe dada graciosamente em 1274 quando se tinha retirado para fazer vida contemplativa no cimo da montanha de Randa: a iluminação é a experiência fundamental do personagem de “Raimundo”, tal como a reporta a Vita coaetanea.
A partir da década de noventa o beato quis que o seu público o identificasse com um intrépido lutador do ideal, que depois de trinta anos de vida estéril, já tinha dado mais trinta ao serviço de Deus escrevendo livros sobre os erros dos infiéis, feito esforços para a formação de um corpo de pregadores, dando bom exemplo aos outros. “Pobre, velho e desprezado”, “sem ajuda de homem nascido”, o personagem de “Raimundo” rebela-se contra a incompreensão de que é alvo, para convencer o público da bondade do próprio programa. A equação que identifica Lúlio com a sua Arte, o personagem e a obra fornece-a o próprio beato através da imagem dele mesmo que nos transmitiu: todos os seus leitores são prisioneiros e, se não queremos sair da literalidade do que escreveu nem da historicidade estrita, não temos outro remédio que aceitar os perfis do seu eu consagrado à causa de Deus.